Sobre o Mundo e o nosso mundo, sobre a Vida e a Morte, sobre o entusiasmo pela vida e o desânimo que leva a querer morrer, sobre problemas e soluções. O artigo desta semana para o Sapo Lifestyle.
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Vontade de viver, vontade de morrer
Algumas pessoas têm sempre um sorriso no
olhar, como se na sua vida não houvesse sofrimento, e outras sentem-se
tão descontentes que chegam a tirar a própria vida. O que há de tão
diferente entre elas? Problemas ou atitudes?
Quando ouvimos a notícia de que
alguém cometeu suicídio, presumimos geralmente que essa pessoa tinha de
estar num sofrimento atroz. Por outro lado, curiosamente, também
presumimos que uma pessoa de disposição alegre e brincalhona teve uma
vida de facilidades e nunca sofreu na vida. Ambos são juízos
precipitados, que devemos ter muito cuidado ao fazer.
Em primeiro
lugar, problemas não são comparáveis, porque as pessoas não são iguais.
Cada pessoa lida com as suas dificuldades e com as suas alegrias de
acordo com quem é, e na sequência de experiências que teve antes. Não
somos neutros, e aquilo que afeta uma pessoa de uma maneira pode afetar
outra de forma completamente diferente, ou não afetá-la sequer.
Ouvimos
falar de pessoas que passaram por experiências extremamente traumáticas
e não perderam a vontade de viver, nem o entusiasmo pela vida. Talvez
nós mesmos tenhamos passado por alguma. Não é possível saber exatamente
como as pessoas ultrapassam certas experiências, até porque as pessoas
são muito diferentes e o que funcionou para uma pode não ser indicado
para outra. Mas se sairmos do nosso pequeno mundo e pensarmos no que
será viver neste momento em algumas regiões do Congo, por exemplo, um
dos países do mundo mais perigosos para as mulheres, podemos encontrar
alguns exemplos impressionantes.
Há uns meses vi uma reportagem
sobre um médico ginecologista congolês, Denis Mukwege, em que este dizia
já ter desabado a chorar inúmeras vezes, quando lhe colocaram nos
braços bebés de poucos meses no limiar da morte, após terem sido
violadas, assim como as suas mães, irmãs e avós, todas vítimas das
atrocidades de guerra civil do Congo. Segundo este médico, a violação em
massa é perpetrada e incentivada - frequentemente com enorme crueldade e
violência - como forma de humilhar as mulheres, e também os homens,
seus familiares. O próprio médico e a sua família sofreram um atentado
que quase tirou a vida a um dos seus filhos, por denunciar a violação
como arma de guerra, que diariamente testemunha, e tentar ajudar estas
mulheres.
Durante a reportagem, sucediam-se as imagens
surpreendentes: no hospital fundado por Denis Mukwege, unicamente para
auxiliar as mulheres vítimas destes crimes, era possível ver e ouvir
algumas delas a cantarem juntas, até a sorrirem, talvez semanas após
serem vítimas de crimes inqualificáveis que quase lhes tiraram a vida e
que tiraram efetivamente a vida a muitos dos seus familiares. Após o
atentado à sua família, o médico ginecologista ausentou-se da prática,
mas estas mulheres agradeciam-lhe e cantavam para ele - sabe-se lá a que
custo - pedindo-lhe que voltasse. E ele voltou.
Diante de tudo
isto pensamos, como é possível ter tanta força e vontade de viver, volta
a sorrir após experiências e perdas destas, após tão grande sofrimento?
Há situações tão extremas, tão no limite do suportável, que parece não
haver escolha nem meio-termo: ou se segue em frente, ou o peso da
tristeza seria grande ao ponto de afundar e afogar a pessoa no próprio
sofrimento. Estas mulheres são um impressionante exemplo da capacidade
de sobrevivência do ser humano, e da sua resistência física, psíquica e
emocional.
Regressando à esfera do pessoal, algo que pode
prejudicar seriamente a nossa vontade de viver é começar a avaliar a
justiça ou injustiça do que nos acontece e acontece aos outros. Por mais
que sejamos tentados a fazê-lo, é inútil, e absurdo, como é tudo aquilo
que dizemos sem conhecimento de causa. Como justificar que bebés, que
mal começaram a viver e não tiveram ainda a possibilidade de cometer
qualquer “injustiça”, passem por situações como a descrita acima? Esse
tipo de abordagem não faz, portanto, qualquer sentido. Até conhecermos
os mistérios e as leis que regem este mundo - e o Cosmos - é melhor
procurar as respostas ao que podemos realmente saber, e ao que pode
fazer a diferença na nossa vida, nomeadamente, como vivê-la de forma a
nos sentirmos realizados e felizes, (o mais possível) independentemente
das circunstâncias exteriores.
A dificuldade que temos em aceitar o
que a vida nos dá tem muito a ver com as nossas expectativas para ela.
Provavelmente, quem nasce num país em guerra ou numa situação de extrema
pobreza, não terá muitas expectativas – nunca conheceu outra realidade -
para além de conseguir para si e para a sua família o pão e
sobrevivência para o dia seguinte, e sair dessa situação. Por outro
lado, para quem nasceu num país de primeiro mundo e se habituou a
determinados padrões de vida e de riqueza – e também nunca conheceu
outra realidade -, deve ser muito difícil ver-se numa situação de
desemprego, por exemplo, ou sofrer outra perda que altere
substancialmente a realidade a que se habituou.
São tipos de
sofrimento muito diferentes, mas ambos válidos, porque o sofrimento
sentido internamente é sempre real. Não faz sentido sofrer e, além desse
sofrimento, ainda sentir culpa por haver quem sofra mais. Isso seria
sofrer duplamente. Mas podemos, e devemos, observar as outras situações,
colocar o nosso sofrimento em perspetiva e relativizá-lo tanto quanto
possível. A realidade que criamos é algo de extremamente poderoso. Em
grande medida, ela não depende de fatores externos, mas das nossas
próprias tendências internas e da nossa vontade. Aquilo que nos move,
sejam ideias, ideais, ambições ou crenças, são os fios com que tecemos o
nosso mundo. E o nosso mundo é a realidade que criamos com o que a vida
nos dá, por isso temos sempre a possibilidade de alterá-lo, se o
pensarmos de uma forma diferente.
Se uma pessoa quer matar-se por
algo que já não tem, seja outra pessoa, um emprego ou um certo nível ou
qualidade de vida, etc, é porque a sua vontade de viver depende em
grande medida de algo exterior a si mesma, que está sempre condenado a
falhar em alguma altura. Então, a nossa vontade de viver não pode
depender de algo exterior a nós: ela é e será afectada continuamente por
factores exteriores – pessoas, crises, guerras, catástrofes naturais –
mas a nossa vontade de viver não pode depender da nada disso.
Fazê-lo,
na prática, exige grande esforço, mas em alguns casos, a vontade de
viver é talvez a única opção, para sobreviver a algumas experiências
limite. É como se a Vida nos testasse e obrigasse a vivê-la com vontade,
ou não vivê-la de todo. E se na vida não há como fugir aos problemas,
nem existem problemas que se resolvam sem sermos nós a resolvê-los, é
provável que após a morte se passe algo semelhante, e que o mesmo
problema nos seja apresentado com outra “roupagem” em reencarnações
subsequentes, até que a sua origem seja resolvida e neutralizada.
Então,
se não há como fugir à vida - nem à morte -, nem como resolver
problemas - mesmo com a morte – vamos viver a vida com vontade... e quem
sabe, a morte, quando ela um dia chegar! Ela é apenas a face não
visível da vida.
Vera Vieira da Silva
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